Ouvindo Chopin e rememorando Tempos

Por Márcia Costa

Há muito tempo li em uma revista que ouvir Chopin enquanto se está estudando aumenta a concentração. Então criei esse hábito e toda vez que escrevo ou estudo ouço Chopin. Geralmente essa musicalidade fica lá no fundo e nunca vem para frente de minhas ações cognitivas. Mas hoje algo está acontecendo. Enquanto rememoro momentos das apresentações de “Tempos de Cléo” em Curitiba a música insiste em ficar junto com as lembranças. E a começar pela dramaturgia. Há tempos tenho-a comparada a uma melodia não tonal talvez porque a dramaturgia de “Tempos de Cléo” não segue uma hierarquia previsível. Mas as palavras minuciosamente tecidas por Carolina Santana tem ritmo e musicalidade ora ácidas ora gentis. Sentenças que distanciam, para logo em seguida aproximar. E minha sensação durante as apresentações foi de estarmos, eu e público, navegando águas de acalanto em mar revolto de emoção, incredulidade, medo e raiva.

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Apresentação no Largo da Ordem – Bebedouro. Foto: Gosmma

Todas as vozes de que é formada a personagem pareciam estar nas bocas de muitos daqueles que me acenavam afirmativamente e quase todos os olhos que entrei em contato me responderam. As interferências foram muitas. Além das contribuições dos “errantes”, a impressão que tive foi de que muitos queriam falar “enquanto é tempo, para não morrer engasgado”. Fico cá pensando se não é tempo de ouvir mais, enquanto há tempo…

Fiquei tocada pela atenção e participação das crianças. Não esperava. Quando estava indo embora ouvi uma menininha perguntar para o pai: “Pai, isso é de verdade?” E o pai disse: “Sim. É sim filha” e ela depois de um tempinho responde: “Nossa”. Ou quando eu subia a escadaria da UFPR e duas crianças puxando as mãos da mãe corriam atrás de mim e diziam: “Mãe, vamos lá conversar com a Cléo” e a mãe responde: “Agora não porque ela está indo estudar Economia”.  E uma linda menina que respondeu com certa indignação: “Não! A água vale mais que o ouro”.

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Apresentação na Praça Santos Andrade. Foto: Rachel Coelho

Aconteceu muitas vezes das palavras ditas por Cléo serem repetidas ou questionadas. Um homem bem vestido mas um pouco alcoolizado desafiou e ficou perguntando o que Jesus significava para mim. Arrisquei dizendo que Jesus era aquele que estava com os que andam para frente e de costas também. Ele não se conformou e insistiu com rispidez. Falei em amor. Ele insistiu. Acho que ele ficou incomodado com o sal grosso. Então cortei dizendo: “Ah, me deixa terminar o serviço aqui”. E continuei a função sob fortes aplausos.

Meus sentidos me fizeram compreender as linhas criadas pelo Sérgio Augusto. Eu senti os fios da meada, linha sinuosa que acompanhava o ritmo do que era dito em consonância com a maneira como era dito. Prevaleceu, como intencionava a direção de Gabi Fregoneis, uma forma híbrida entre vivência e espetacularização. E todos nós estávamos juntos. Toda a equipe foi sentida, mesmo que não estivesse presente fisicamente. A minha pele sentiu a cada apresentação o quanto todos estávamos juntos na tessitura de nossa amada obra artística.  E as reações não me deixam mentir. Ouvi comentários curiosos e entusiasmados sobre o figurino de Cristine Conde. Muita gente querendo saber mais sobre a dramaturgia da Carolina Santana. Elogios para a arte visual de Sérgio Augusto (programas, postais, cartaz), inclusive algumas pessoas quiseram colecionar os postais que foram bastante procurados e comentados. Foi muito gratificante cantar junto com a plateia as músicas do Édipo Ferreira. Eu ouvia depois das apresentações sempre alguém cantarolando “Quem ama já vai pro céu”.

Desde a primeira apresentação sempre me lembro das palavras do Roberto Corbo me dizendo para ampliar a atenção e não deixar passar nada. Provavelmente devo ter perdido alguma coisa, pois aconteceram muitas. Mas minha atenção foi apurada por causa dessa contribuição. Outro que parece estar sempre comigo e me lembrando para respeitar as pausas e deixá-las preenchidas é o Lucas Fiorindo. Não consigo esquecer do olharzão apaixonado e reconfortante do Gabriel Dominato, que me olhou durante todo o processo de criação. E é o seu encantamento que me levanta a bola quando mergulho em incertezas. Mesmo quando ele não está presente, essa confiança está gravada.

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Foto: Keli Melo

A força da Cléo e seus tempos que inspiram além mundo. Todos os elementos da montagem foram observados e acredito que estão todos bem conectados. Engraçado que foi durante as apresentações fora da nossa cidade de origem (no qual muitos nos conhecem e também conhecem o processo e a Cléo) que percebi todas as mãos que bordaram esse trabalho. E aqui junto comigo estava a minha companheira Rachel Coelho. Inscreveu-nos no Fringe. Falou de Cléo para todos, divulgou. Marcou entrevistas e fotos. Produziu, produz, acredita. Assistiu ‘Tempos de Cléo” quinze vezes como se fosse a primeira vez. Rachel, como é bonito ver o seu gosto e amor pelo trabalho. Ops! Chorando um pouquinho e ouvindo agora  Etude Opus 25 visualizo cada um de nós como um grupo de ourives que construiu feliz uma joia tosca, torta e brilhante.

Um comentário sobre “Ouvindo Chopin e rememorando Tempos

  1. Tânia Farias disse:

    Hoje pude parar para ler a tua reflexão, e como sempre que te encontro, foi uma grata surpresa.
    Fiquei com vontade de agradecer a generosidade com que envolves a todos a teu redor, como te entregas na cena, como celebra no teatro a oportunidade de estar viva.
    Deixo aqui estas palavras, também toscas, porque não podia ler teu depoimento e não mandar um axé.
    Salve, Márcia!!! Que a gente ainda tenha um belo encontro.
    Beijos pra Rachel, amada.

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