Pelos festivais …

Uma das coisas mais legais que existem na vida de um artista é participar de festivais. É um precioso momento de trocas e intercâmbios, de conhecer pessoas especiais e mostrar o nosso trabalho de uma maneira festiva. Recentemente, estivemos participando de dois festivais resistentes.

Um deles, em outro Estado, marcou a primeira apresentação da peça fora do Paraná: o FESTIA – Festival Internacional de Canoas, realizado pelo Grupo TIA (Teatro Ideia Ação) ali pertinho de Porto Alegre. Essa foi a sexta edição de um festival promovido com poucos recursos, mas muita “persistência e pé na tábua”. Lá também pudemos ministrar uma oficina para compartilhar o processo de construção da peça, além de participar de um bate-papo no último dia do evento. Foi lindo!

img_3678

O outro, o FETACAM- Festival de Teatro de Campo Mourão, é promovido pela Fundação Cultural há 15 anos, mas nem por isso encontra o apoio merecido. Vale lembrar que Campo Mourão, pertinho de Maringá, é uma cidade que sempre nos serviu de referência como uma das cidades do interior paranaense com uma vida cultural mais ativa. Entretanto, para que essa fama continue existindo é preciso um olhar mais carinhoso e atento para seus artistas e produtores culturais, sobretudo da administração pública.

No FETACAM pudemos ouvir um feedback do Beto Lanza, representante da Secretaria de Estado da Cultura que foi convidado para atuar como debatedor do festival. Vale lembrar que Beto participou da comissão julgadora da Funarte no ano em que fomos contemplados pelo Myriam Muniz, por isso foi bastante relevante para nós experimentar esse espaço de troca.

Em Campo Mourão fizemos uma das apresentações mais difíceis até hoje, pois tivemos muitos eventos concorrendo ao mesmo tempo (campanha de doação de órgãos, passeata política, carreata, banda de rock gospel). É a rua sempre nos ensinando algo novo e nos tirando qualquer possibilidade de conforto!

Deixamos aqui nossos sinceros agradecimentos àqueles que apostaram em nosso trabalho e nos receberam em suas cidades com tanto respeito.

IMG_4436.JPG

Registro de apresentações

A atriz Márcia Costa foi convidada a participar do primeiro TEDx de Maringá, que rolou no dia 26 de julho. Lá ela compartilhou o processo de criação do espetáculo, reproduzindo uma pequena cena de poucos minutos. Foi uma experiência nova.

tedx

O TED é uma marca e para utilizá-la é preciso ter uma licença e seguir algumas regras. O público máximo é de 100 pessoas, que se inscreveram e foram selecionados pela produção do evento.

No dia seguinte, 27 de julho às 19h30, apresentamos o espetáculo completo na programação do III Colóquio de Feminismo Negro – Diálogos sobre o empoderamento da mulher, promovido pelo NEIAB – Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-brasileiros / UEM.

13532913_963028280482918_6642804669022412785_n.jpg

Segundo os organizadores, o principal objetivo do Colóquio é evidenciar as discussões do processo de empoderamento que muitas mulheres negras estão buscando e apresentar empreendedoras negras cujos artigos são pensados para valorizar o conhecimento da cultura afro e as particularidades da mulher negra. O evento foi em homenagem à cantora Elza Soares.

Ouvindo Chopin e rememorando Tempos

Por Márcia Costa

Há muito tempo li em uma revista que ouvir Chopin enquanto se está estudando aumenta a concentração. Então criei esse hábito e toda vez que escrevo ou estudo ouço Chopin. Geralmente essa musicalidade fica lá no fundo e nunca vem para frente de minhas ações cognitivas. Mas hoje algo está acontecendo. Enquanto rememoro momentos das apresentações de “Tempos de Cléo” em Curitiba a música insiste em ficar junto com as lembranças. E a começar pela dramaturgia. Há tempos tenho-a comparada a uma melodia não tonal talvez porque a dramaturgia de “Tempos de Cléo” não segue uma hierarquia previsível. Mas as palavras minuciosamente tecidas por Carolina Santana tem ritmo e musicalidade ora ácidas ora gentis. Sentenças que distanciam, para logo em seguida aproximar. E minha sensação durante as apresentações foi de estarmos, eu e público, navegando águas de acalanto em mar revolto de emoção, incredulidade, medo e raiva.

temposdecléo by gosmma (29).JPG

Apresentação no Largo da Ordem – Bebedouro. Foto: Gosmma

Todas as vozes de que é formada a personagem pareciam estar nas bocas de muitos daqueles que me acenavam afirmativamente e quase todos os olhos que entrei em contato me responderam. As interferências foram muitas. Além das contribuições dos “errantes”, a impressão que tive foi de que muitos queriam falar “enquanto é tempo, para não morrer engasgado”. Fico cá pensando se não é tempo de ouvir mais, enquanto há tempo…

Fiquei tocada pela atenção e participação das crianças. Não esperava. Quando estava indo embora ouvi uma menininha perguntar para o pai: “Pai, isso é de verdade?” E o pai disse: “Sim. É sim filha” e ela depois de um tempinho responde: “Nossa”. Ou quando eu subia a escadaria da UFPR e duas crianças puxando as mãos da mãe corriam atrás de mim e diziam: “Mãe, vamos lá conversar com a Cléo” e a mãe responde: “Agora não porque ela está indo estudar Economia”.  E uma linda menina que respondeu com certa indignação: “Não! A água vale mais que o ouro”.

DSC06662

Apresentação na Praça Santos Andrade. Foto: Rachel Coelho

Aconteceu muitas vezes das palavras ditas por Cléo serem repetidas ou questionadas. Um homem bem vestido mas um pouco alcoolizado desafiou e ficou perguntando o que Jesus significava para mim. Arrisquei dizendo que Jesus era aquele que estava com os que andam para frente e de costas também. Ele não se conformou e insistiu com rispidez. Falei em amor. Ele insistiu. Acho que ele ficou incomodado com o sal grosso. Então cortei dizendo: “Ah, me deixa terminar o serviço aqui”. E continuei a função sob fortes aplausos.

Meus sentidos me fizeram compreender as linhas criadas pelo Sérgio Augusto. Eu senti os fios da meada, linha sinuosa que acompanhava o ritmo do que era dito em consonância com a maneira como era dito. Prevaleceu, como intencionava a direção de Gabi Fregoneis, uma forma híbrida entre vivência e espetacularização. E todos nós estávamos juntos. Toda a equipe foi sentida, mesmo que não estivesse presente fisicamente. A minha pele sentiu a cada apresentação o quanto todos estávamos juntos na tessitura de nossa amada obra artística.  E as reações não me deixam mentir. Ouvi comentários curiosos e entusiasmados sobre o figurino de Cristine Conde. Muita gente querendo saber mais sobre a dramaturgia da Carolina Santana. Elogios para a arte visual de Sérgio Augusto (programas, postais, cartaz), inclusive algumas pessoas quiseram colecionar os postais que foram bastante procurados e comentados. Foi muito gratificante cantar junto com a plateia as músicas do Édipo Ferreira. Eu ouvia depois das apresentações sempre alguém cantarolando “Quem ama já vai pro céu”.

Desde a primeira apresentação sempre me lembro das palavras do Roberto Corbo me dizendo para ampliar a atenção e não deixar passar nada. Provavelmente devo ter perdido alguma coisa, pois aconteceram muitas. Mas minha atenção foi apurada por causa dessa contribuição. Outro que parece estar sempre comigo e me lembrando para respeitar as pausas e deixá-las preenchidas é o Lucas Fiorindo. Não consigo esquecer do olharzão apaixonado e reconfortante do Gabriel Dominato, que me olhou durante todo o processo de criação. E é o seu encantamento que me levanta a bola quando mergulho em incertezas. Mesmo quando ele não está presente, essa confiança está gravada.

10

Foto: Keli Melo

A força da Cléo e seus tempos que inspiram além mundo. Todos os elementos da montagem foram observados e acredito que estão todos bem conectados. Engraçado que foi durante as apresentações fora da nossa cidade de origem (no qual muitos nos conhecem e também conhecem o processo e a Cléo) que percebi todas as mãos que bordaram esse trabalho. E aqui junto comigo estava a minha companheira Rachel Coelho. Inscreveu-nos no Fringe. Falou de Cléo para todos, divulgou. Marcou entrevistas e fotos. Produziu, produz, acredita. Assistiu ‘Tempos de Cléo” quinze vezes como se fosse a primeira vez. Rachel, como é bonito ver o seu gosto e amor pelo trabalho. Ops! Chorando um pouquinho e ouvindo agora  Etude Opus 25 visualizo cada um de nós como um grupo de ourives que construiu feliz uma joia tosca, torta e brilhante.

Crítica: Um espetáculo em movimento

 

Por Jéssica Gabriele de Oliveira*

A primeira vez que seu nome me veio à tona, me coloquei a pensar sobre essa palavra e suas significações: TEMPO, ou Tempo(s), como no título. Esta mesma palavra não fala só da duração das coisas, mas também de distância, comunicação e solidões (que engraçado uma palavra sozinha poder ser plural não é) fala de um tempo de descobertas passadas e de repetição de erros: quanto tempo nós dispomos a observar às pessoas invisibilizadas a nossa volta? Cléo são todas as mulheres traídas pela história, e não pela ação do tempo, mas pela forma como essas histórias foram contadas. Cléo fala das políticas públicas ineficientes ou mesmo inexistentes, mas também da delicadeza no olhar de uma mulher que observa o mundo por outras lentes. Cléo são as prostitutas e os moradores de rua que paradas(os) nas esquinas do mundo, são considerados sem lugar, utilidade ou propósito. Tenho sempre a impressão de que as coisas que não se prestam ao capitalismo parecem não servir, ou não pertencer a sociedade, no sentido de serem reconhecidas, observadas ou apreciadas. “Por que o ouro vale mais que a água?”

Não estamos habituados a reconhecer a diferença, dificilmente estamos dispostos a nos habituar, a apurar os olhares, a conhecer e reconhecer outros tempos. T-E-M-P-O-S. Quanto tempo até percebermos que somos muitos? Quanto tempo até aprendermos o tempo do outro, até comunicar, chegar ao outro. Cléo parece estar sozinha, e ela está, num mundo cheio de gente “esquizofrênica”, ela parece ser a inconveniente e desajustada. Mania que a gente tem de querer colocar todas as pessoas numa mesma caixinha, pois eu digo uma coisa: ser desalinhado é lindo, andar no (contra)tempo, também é.

_MG_4178

A atriz Márcia Costa faz isso de uma forma graciosa, escorregando pelas nossas certezas e tirando nosso conforto, estende a mão e depois a recolhe. O projeto é predominantemente pensado e executado por mulheres – com produção impecável da Rachel Coelho, direção de Gabi Fregoneis, texto e assistência de direção de Carolina Santana e figurino assinado por Cristine Conde – e traz aos olhos toda a importância do tema e a necessidade de mais prêmios que contemplem o teatro e a atividade cultural no país. Ao experimentar a peça, é possível perceber a coletividade e o trabalho de todas as envolvidas, Carolina Santana, que se formou em Artes Cênicas na primeira turma do curso de graduação da UEM, compõe um texto poético, que dá espaço para a criação da atriz e se adapta facilmente a rua, a aparente desconexão, é na verdade eco das diversas vozes representadas por essa mulher solitária chamada Cléo. O figurino de uma simplicidade e uma grandeza tamanha, que ocupa espaço, olhares, causa sensações (tendo em vista o calor que estava fazendo na feira no dia que tive o privilégio de me deparar com os tempos de Cléo).

A peça foi pensada para a rua e voltando meu olhar para os aspectos formais da mesma, não poderia deixar de considerar a assertividade da escolha, a rua é o lugar dos desajustados, do não-lugar e não existe melhor espaço que a rua, para mostrar as verdades que a gente tenta esconder dentro de nossas casas, no nosso âmbito privado, na “família”. Como diria Foucault ao se referir à sexualidade, mas que cabe perfeitamente aqui também, se pensarmos pelo aspecto do não dito, “a repressão funciona, decerto, como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio, afirmação de inexistência e, consequentemente, constatação de que, em tudo isso, não há nada para dizer, nem para ver, nem para saber.” É na rua que essa peça precisa estar, ela precisa ocupar todos os espaços públicos possíveis, pra falar de políticas, afetos e contribuir para fortalecer o cenário teatral maringaense.

Um espetáculo em movimento, que balança nossas certezas e nos coloca em desconforto, que envolveu o trabalho e o tempo de diversos artistas e produtoras(es) culturais e que merece espaço e reconhecimento. Diante de tantos “tempos” apagados pela história – o tempo das mulheres, dos negros, dos homossexuais – é necessário falar sobre cada um deles, a gente precisa falar sobre os tempos de Cléo. E quer forma mais propícia para se fazer isso do que a forma teatral e os mecanismos que a arte propõe? “E tem até um cafezinho! Só que é meio amargo mas… é a vida, não é?

*Jéssica Gabriele de Oliveira é formanda do curso de Artes Cênicas da UEM e escreveu este texto na disciplina de Crítica Teatral, ministrada pelo professor Élder Sereni Ildefonso

Crítica: Um presente para Maringá

Por Tamires Pereira Schmitt

O espetáculo Tempos de Cléo foi contemplado pelo Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz/2014 e apresentado em diversos espaços públicos da cidade de Maringá-PR. Com suas pesquisas iniciadas em julho de 2014, a equipe apresentou um trabalho sensível, crítico e envolvente durante toda a temporada em que esteve em cartaz.

Com direção de Gabi Fregoneis, produção de Rachel Coelho e texto e assistência de direção de Carolina Santana, a atriz Márcia Costa nos leva a um imaginário quase que intocável, o do cotidiano de quem vive nas ruas. Durante esses 12 meses de pesquisa, construiu-se uma personagem inspirada principalmente em Cléo, uma mulher que está fora dos padrões normativos impostos socialmente e que passa grande parte do seu dia circulando pelos blocos da UEM – Universidade Estadual de Maringá, empurrando seu carrinho e interagindo com as pessoas dentro de sua lógica própria de raciocínio. Para além de Cléo, a equipe buscou conhecer mais pessoas em condições parecidas, fora do circuito universitário. Surgiram histórias tristes, engraçadas e também felizes, o que nos dá a possibilidade de sair deste espaço confortável que buscamos nos colocar. Um espaço que está dentro de cada um de nós, onde armazenamos aquilo que conhecemos e recorremos a estas referências a todo tempo para nos sentirmos parte, apenas do que interessa, de tudo que nos rodeia.

_MG_3823.jpg

A imagem de uma pessoa que vive na rua não nos é estranha, isso está gravado em nós, porque já vimos. Mas onde essa experiência está guardada? O que fizemos e/ou fazemos dela? Como encaramos o contato com esse imaginário? O que esperamos de alguém que vive em situação de risco? São perguntas que Tempos de Cléo me instigou a refletir sobre. A atriz nos mostra que essas pessoas, renegadas às margens da sociedade, têm um olhar incrível sobre a imensidão que a cidade, o tempo e as relações representam. Quando a personagem pergunta, por exemplo “Porque é que o ouro vale mais do que a água?” paira sobre o público um silêncio quase que constrangedor, um constrangimento por fazer parte desta lógica subversiva de valores em que vivemos. E assim se sucede uma avalanche de pensamentos e sacadas que só sendo alguém que está de fora desta lógica para exercitar o olhar com tal perspicácia.

A ideia de espetáculos realizados em locais públicos sempre vem associada, de alguma forma, à reação dos transeuntes. Neste caso, podemos compreender também a importância política do trabalho. O figurino e adereços não fazem questão de apresentar uma estética agradável visualmente, mas sim que levem à reflexão sobre seus significados. Observar o olhar das pessoas que passam e suas reações faz parte da rica experiência proporcionada pelo espetáculo, a qual pode nos aproximar da personagem, agora com um olhar sociológico e colocar em prática o exercício da empatia para com o próximo.

A importância do trabalho para repensarmos a cidade, o tempo, nossas relações e a lógica da organização do sistema em que vivemos é inquestionável. Isso sem falar na sensibilidade com que essas questões são abordadas. Tempos de Cléo é um espetáculo emocionante, que nos abraça como nos abraçam aqueles longos e necessários tempos de reflexão sobre a vida. Sem dúvida um presente para a cidade de Maringá e para a humanidade.

*Tamires Pereira Schmitt é formanda do curso de Artes Cênicas da UEM e escreveu este texto na disciplina de Crítica Teatral, ministrada pelo professor Élder Sereni Ildefonso.

Crítica: De rua em rua

Por Rodrigo Lanzoni Fracarolli*

Viajar pelo Brasil é uma atividade de descobertas. Um bom viajante não reconhece a grandeza de um lugar por seus pontos turísticos, seus cartões postais ou seus chaveiros, mas pela rua. É na rua que estão as principais características daquele povo. Seus preconceitos, suas angústias, sua fé, sua força… Tem rua em que você parece invisível. Passa carro, moto e caminhão, passa fumaça, passa sozinho. Tem rua em que você se sente parte. Dona Aparecida lhe abre um sorriso e chama logo o Carlinho pra te mostrar onde fica o mercado, fechado por causa do feriado. Cada rua tem seu nome e sua história, narrados pelo maior personagem da nossa sociedade: o povo.

Sabe aquele figura que passa e todo mundo percebe? Aquele que todos sabem o nome, mas ninguém sabe onde mora? Aquela pessoa que às vezes dá medo, mas que no fundo nos faz pensar? Essa pessoa é a Cléo.

Em tempos de Cléo esse universo que está exposto na rua, e que ninguém vê, ganha destaque em uma aula de humanidade, de sabedoria.

O texto de Carolina Santana é extremamente coerente com a poesia que poucos enxergam na rua. Fragmentado, com idas e vindas, mudanças de ritmo, de tom, o texto atinge cada vez mais fundo na nossa consciência. Méritos também da atriz Márcia Costa, que torna vivo o texto da Carol. Ao longo de uma semana após assistir a peça, uma voz continuou em minha mente me perguntando: você faz economia ou a economia que te faz? A economia, a engenharia, a pedagogia, a escola, a TV, os jornais. Eu sou o que sou o que fizeram de mim? Será por isso que aquela pessoa da rua, sem tanta influência, se torna imensa, verdadeiramente ela?

_MG_4587

Esse gigante morador de rua apareceu no dia 07 de novembro de 2015, na praça Raposo Tavares. Um sujeito anônimo foi ouvido por todos, sem o auxílio dos auto falantes. Este senhor protagonizou uma cena que roubou minha atenção por diversas vezes. A peça parecia ter sido montada para ele. Ele se emocionou, chorou, riu alto, tomou café. Conversou com cada um dos espectadores e, obviamente, com Cléo. A primeira resposta que vem à mente de qualquer um é a mesma: esse sujeito está bêbado e não diz coisa com coisa. Mas será? Não seria aquela a capacidade de sensibilização perdida em nossas formatações sociais? Me senti incapaz de me emocionar perto daquele senhor. Ele estava com sua mãe, que queria muito ir embora. Perderam um ônibus para Marialva pois ele queria muito ouvir a Cléo, com quem ele cresceu junto e que tinha uma irmã, chamada Elisabeth (em francês). Chorou copiosamente cada vez que lembrou de Elisabeth. Depois parou, para cantar junto com Cléo.

A peça toca, comove, faz refletir, mas a personagem Cléo ainda é muito menor do que a Cléo. Isso está longe de ser uma crítica negativa ao grupo responsável pela peça, mas é um alerta lembrando que a rua merece uma representação à altura. É preciso ouvir o que a rua tem a dizer. E este conselho não é dado só ao grupo…

*Rodrigo Lanzoni Fracarolli é formando do curso de Artes Cênicas da UEM e escreveu este texto na disciplina de Crítica Teatral, ministrada pelo professor Élder Sereni Ildefonso.

Compartilhando processos

Dia desses a atriz Márcia Costa foi convidada pela professora Vânia Malagutti a compartilhar um pouco de sua experiência como atriz junto aos alunos do Colégio Estadual Alberto Byington Junior. Márcia contou uma história que integra o espetáculo “O xetá”, falou de sua carreira e também contou um pouco de sua mais recente montagem, “Tempos de Cléo”.

Os alunos escreveram um relatório desta atividade para a professora. Deles separamos um para compartilhar com vocês (com autorização).

carta estudante

Que não acabe quando termina

Por Rachel Coelho

Fim de temporada*. Concluímos hoje as dez apresentações viabilizadas pelo Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz / 2014. Sensação de alívio por concluir o projeto (que ainda não terminou para mim, pois tenho um relatório para entregar, mas sinto que o mais difícil já passou!). Um certo cansaço pelo acúmulo de acontecimentos dos últimos dias me tira um pouco a alegria que poderia estar sentindo agora. Busco na memória, então, lembranças desse projeto que há mais de um ano ocupa nossas vidas.

Lembro-me bem do nosso primeiro encontro, em julho de 2014: eu, Márcia, Gabi e Carol sentamos para discutir o que queríamos fazer. Foram alguns encontros até traçar o roteiro inicial. Naquele momento o espetáculo já tinha nome e a gente definiu que seria encenado nas ruas. Lembro-me também de quando saiu o resultado, em 17 de outubro de 2014. Chorei de emoção. A primeira aprovação a gente não esquece!

Imediatamente começamos a nos reunir. Só paramos nas festas. Em janeiro deste ano fomos pra rua.  A gente percebeu que precisava aproveitar o tempo para ter Gabi conosco, pois estava grávida e sua Diana nasceria em maio. Eu, Gabi, Márcia, Carol e Gabriel Dominato, que entrou na equipe para registrar em vídeo as experiências da rua.

Como diz um personagem de “Tempos de Cléo”: “a gente aprende só de ver. A gente aprende só de ouvir”. Pura verdade. A rua foi uma escola. Você aprende que a rua tem vida própria, tem sua dinâmica, conforme o local, o horário, o dia da semana. Você aprende que uma câmera pode ser uma ameaça e fazer teatro pode ser muito perigoso. Você aprende que “tem gente que tem dois olhos pra não ver” e que não é tão difícil ser invisível.

Da rua surgiu, em carne e osso, Jéssyka. Surgiu Fátima/Sueli (para cada um da equipe ela deu um nome). Surgiu o homem do algodão doce. O sapateiro. O homem que não toma remédio. O baiano trabalhador. O homem apaixonado que traz a foto da mulher na carteira. O militar. A Cléo. Várias Cléos.

12165651_438746022978610_367073632_n

Registro de Cléo, inspiração inicial deste trabalho. Foto: Gabriel Dominato.

Aprendi muito sobre a rua, mas não só. Aprendi também sobre teatro, sobre Maringá, sobre mim, sobre meus colegas de trabalho, sobre o que eu quero fazer da vida, sobre o que eu não quero.

Uma vez me disseram que compartilhar um processo de criação é uma das maiores intimidades que pode existir. Acho que é verdade. Hoje me sinto muito mais próxima da Márcia Costa, tão segura de si, tão dedicada, tão empolgada com suas ideias, seus projetos. Alguém que me deixa segura, em quem confio. Alguém que me respeita, me dá autonomia, confia em mim. Gratidão, Márcia! Amo você! Obrigada por pensar em mim para este e outros projetos. “Nós é do morro, parceira. Tamo junto!”

Me sinto mais próxima da Gabi, que confiou em mim cegamente para administrar um projeto proposto em seu nome. Tranquila, honesta e, quando sente necessidade, firme e segura de si. Gratidão, Gabi! Sua confiança foi muito importante pra mim. Sua elegância em lidar com todos os momentos em que estive “tensa” fizeram crescer a minha admiração por você e me ensinaram mais sobre mim.

Me sinto mais próxima de Carol, tão sensível para costurar as histórias da rua que todos nós recolhemos e tão sagaz para encontrar respostas geniais, que fazem do texto de Tempos de Cléo um dos grandes trunfos do projeto. Gratidão, Carol! Você é um talento e torço para que acredite sempre em sua capacidade e siga adiante escrevendo e escrevendo.

Sou mais próxima de Gabriel Dominato pela sua dedicação ao projeto. Ele entrou com tudo na equipe, enfrentou seus medos na rua, assistiu a todos os ensaios, aprendeu e ensinou a gente. Gratidão, Gabs!

Mais próxima de Sérgio Augusto, que conheci por conta do projeto e pude perceber que é disponível, muito produtivo, dedicado. Que ele era talentoso eu já sabia. Sem dúvida a identidade visual de Tempos de Cléo é algo de que nos orgulhamos muito, algo que agrega ao projeto e que fica para a posteridade. Gratidão!

Gratidão também a Cristine Conde, que também conheci pelo projeto e nem preciso mencionar sua importância porque isso todos viram (tem importância que ninguém vê, fica escondida). Nas oportunidades de encontro que tivemos, Cris me ensinou muito. Seu figurino, eu também acho maravilhoso!

Gratidão também a Édipo Leandro Ferreira, a Lucas Fiorindo, a Fábio Mascarin e Victor Machferreh (Fantasia Filmes) e a Rafael Saes, que completam nossa equipe. Uma equipe que não briga, que dá certo. Um agradecimento especial ao Roberto Corbo, meu parceiro de todas as horas, as boas e ruins. Amo você, obrigada por estar comigo nessa.

Gratidão a todos os amigos que nos prestigiaram, sobretudo àqueles que foram várias e várias vezes nos ver. As ausências sempre são sentidas (somos humanos!), mas as presenças são muito mais importantes!

É um privilégio fazer o que você gosta com quem você gosta. Sou feliz por mais essa conquista. Sinto que esse projeto também é meu. É a Márcia quem está em cena, mas eu sempre chamo os amigos perguntando se eles vem “ver a gente”. Sim, todos nós estamos lá.  É só parar pra ver.

Que “Tempos de Cléo” voe! Que a gente consiga persistir, resistir, superar! Sempre! Evoé!

*Tempos de Cléo tem nova apresentação no dia 3 de dezembro, às 20h30, na UEM, integrando a Temporada Universitária.

A visão cósmica da Rua em Tempos de Cléo

Texto e fotos: Lucas Fiorindo

Hoje, o senhor da garapeira na esquina me falou que não se deve, de jeito nenhum, tomar a garapa e depois tomar algum café. Por quê? Porque dá dor de barriga e solta o intestino. E lacrou com tom de certeza absoluta: “Pode acreditar, é de lei, isso é fatal!”

Acompanhei à distância o processo criativo de Tempos de Cléo, imaginando o quão potente estaria sendo e que caminhos misteriosos aquela pesquisa abriria para o trabalho de criação. Depois, pude ter em mãos e fiquei instigado ao ler, pronto, o texto, o croqui e as artes da programação visual. Me enchi de ânimo artístico ao acompanhar alguns ensaios. E agora, vendo tudo materializado e a valer na Rua, posso dizer um pouco mais detalhadamente como o trabalho me afeta enquanto espectador e artista. E como reverbera.

10460562_308232026018600_1228750748113399223_o

A personagem Cléo se manifesta em legião. Ela é uma consciência que se forma pela intersecção de fragmentos de percepções existenciais captadas e coletadas dos viventes da Rua. Muito além de histórias, causos, opiniões, são, antes, percepções. Cléo intermedeia o choque entre o modo de apreensão direto que há na Rua e o modo de apreensão virtual que há na vida dos que estão na Plateia. A percepção direta pelos sentidos; e a aquisição de conhecimento/pensamento estruturado em linguagem. A primeira precisa da experiência lúcida do tempo e dos fatos, a segunda necessita de ordem. E Cléo diz já ter deixado de ser ordenada.

Sendo assim, ela fala através do caos, numa sequência de impulsos, mudanças de temática e estados de espírito que, no primeiro momento, soam deslocados, mas, no seu inevitável encadeamento, vão criando uma carga de provocações da mesma natureza que uma parábola ou uma analogia são capazes de criar. E é assim que os profetas se expressam.

11838844_308231949351941_1112812622495961478_o

A aguçada percepção, faz de Cléo um ponto de acúmulo de experiência. Ela é muito lógica. Na Lógica que é própria da Rua. Na Rua também tem Lei e é melhor obedecer *. A Rua aparece então como a única Instituição existente ou acessível àqueles que nela estão. A Rua é casa, família, escola, religião, ciência, imprensa, polícia, câmara, congresso, tribunal, entretenimento… E Cléo, como a profeta de sua legião, se põe como professora, sacerdotisa, jornalista, investigadora, cientista, conselheira, júri, artista…

E assim, nos faz pasmar ao relembrar, por um instante, que, de fato, tudo isto está interligado de alguma forma. O seu falar dissolve, entre si, nossas bem delimitadas e especificas searas de conhecimento. Nos faz notar como essa estrutura ordenada em que confiamos não é confiável e que nossa percepção está condicionada pela demanda de tempo (pressa), informação, economia, aparelhos eletrônicos, instruidores, formadores de opinião… somos gente preguiçosa dominada por robô*.

Se estamos fragmentados, Cléo nos diz que a Rua é o lugar onde tudo se conecta. Sua palavra para isso é Sabedoria e seu conselho é a primazia dos sentidos e da intuição: A gente aprende só de ver, a gente aprende só de ouvir. Se o mato está alto, é porque o lugar está abandonado. Se tem urubu, é porque tem coisa podre, carniça*.

Rajneesh, mestre da arte de medição, ensina a diferença entre Conhecimento e Sabedoria: Conhecimento é acumulo de informação, pode ser aprendido e é periférico. Sabedoria é entendimento, vivência e está ligada ao Ser. O conhecimento divide a realidade em conhecedor, conhecido e conhecimento. A sabedoria unifica, dissolvendo definições e fronteiras. O caminho da sabedoria é a meditação. E ele cita o Buda Gautama que define: “meditação é quando você está Testemunhando”.

E pra mim, Cléo é Testemunha. Vê o Todo a partir da sua posição de lótus asfáltico e publica, aos berros, a visão cósmica da rua. Visão que demorou mil anos – no seu ritmo de passar o tempo – pra ser constituída, com observação e destruição dos paradoxos (trocadilos*) que existem entre o que é considerado como conhecimento e o que é, de fato, manifesto.

Falando agora mais especificamente, realço minha admiração pelo texto da Carolina Santana, que com muito tato e competência descobriu/criou um fluxo de consciência adequado pra esse ponto de recepção e transmissão de percepções diversas e compilou uma ‘arquitetura’ muito singular da fala.

11235279_308231862685283_796856336515364685_o

O figurino de Cristine Conde é assustadoramente a materialização da essência do processo de pesquisa. O jeans é a segunda pele dos que passam pela rua, independentemente do seu engajamento econômico, idade, tribo. Algumas peças jeans são usadas por tanto tempo que se transformam num simulacro da personalidade de quem usou. Os objetos esquecidos nos bolsos sinalizam os costumes, a atividade, a história, o estado emocional, etc. O figurino, então, construído por esses fragmentos, enriquece deveras a ideia que tenho defendido. O figurino também é uma legião. Traz tons genialmente equilibrados de moradora de rua, de profetiza, de mulher, de concreto, de épocas, estilos, camadas sociais, enfim, de percepções…

O projeto visual do Sérgio Augusto também é certeiro e enriquecedor para o projeto. Ele soube utilizar os campos semânticos presentes no processo da montagem, mas manteve seu espaço criativo. Isto ampliou a abrangência do trabalho.

Em todos os detalhes de execução do projeto percebe-se a competência da produtora Rachel Coelho que, atuando assim, traz para a cidade de Maringá novos critérios para a produção artística. Tanto na forma de conceber os projetos, escrevê-los e enviá-los às instâncias federais, quanto na sua execução e principalmente na preocupação com a divulgação, primando pela qualidade do que chega antes do espetáculo até o público.

Percebo que na direção, Gabi Fregoneis foi, intencionalmente e segura disso, mais uma disparadora de direções a serem exploradas que uma encenadora detalhista e exigente. Isto faz o caráter performático do espetáculo e só é seguro e possível graças a experiente e excelente atriz que é a Márcia Costa.

11025870_308231292685340_553084218208820130_o

Eu acompanhei os últimos ensaios e as apresentações. Pude perceber que o espetáculo continua crescendo em Sabedoria agora que está na Rua. Márcia, como Cléo, está com a percepção ativa e vai captando a essência dos lugares, descobrindo novas formas de ativar as riquezas do texto e de criar relações nesta instância.  Sua energia cênica e carisma são inquestionáveis. A peça se faz espetáculo e a legião Cléo tem vozes na boca de Márcia.

Depois disso tudo, eu gostaria de me intrometer construtivamente, tentando explicitar melhor alguns apontamentos que já fiz pessoalmente à Márcia:

Ao longo da peça surgem procedimentos importantes na coesão energética, são, no geral, as excelentes canções musicadas pelo Édipo Ferreira e as potentes construções cênicas como a da mulher esfaqueada, que é representada quase que como uma santa misericordiosa; além da Jessyca, e da hora do café e do radinho de pilhas que pinga sangue em notícias policiais. São procedimento que, feitos como são, impulsionam o espetáculo e fortalecem Cléo.

Mas ocorrem alguns relativamente longos período de ênfase no texto em que a atenção do público tende a se distanciar, o que obriga a atriz, sentindo isso, a ampliar a energia de transmissão. Isto, na minha percepção, enfraquece um pouco Cléo, que é mais uma antena que uma emissora. Então aparecem períodos em que Cléo acaba perpetuando um tom e não consegue saborear bem as mudanças de tempo e intencionalidade entre um bloco de texto e outro. Sua introspecção fica comprometida. Há uma perda de intensidade pontual e, quando isso acontece, a “legião” desaparece e deixamos de vislumbrar alguns dos tempos tão ricos que estavam ali em potencial, mas não se manifestam. Nestes momentos, Cléo deixa de experimentar o tempo e acaba caindo na nossa pressa.

Sinto, então, a vontade, como público e como ator, de sentir Cléo variar mais em intenção, ritmo e afeto, o que poderia ativar melhor as distâncias infinitas que existem entre uma frase e outra do texto e, salvo engano, nos possibilitaria enxergar melhor seus movimentos internos e talvez os externos.

Nas vezes em que esse movimento interno é visível, como no gramelô, no “conectando” ou quando ela diz “vê se me desclassifica!”, nos movimentamos junto na plateia e nos sentimos incluídos como parte de sua legião. Para nós é catártico e nos tira da nossa apatia de preguiçosos dominados por robô.

Este é um apontamento muito específico que eu acredito que pode contribuir para esta peça que está tão linda e bem sucedida.

Parabenizo mais uma vez a todos os envolvidos: parabéns!

Estou muito grato.

E hoje, porque eu tinha tomado o café da Cléo, não tomei garapa. É melhor obedecer*.