Que não acabe quando termina

Por Rachel Coelho

Fim de temporada*. Concluímos hoje as dez apresentações viabilizadas pelo Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz / 2014. Sensação de alívio por concluir o projeto (que ainda não terminou para mim, pois tenho um relatório para entregar, mas sinto que o mais difícil já passou!). Um certo cansaço pelo acúmulo de acontecimentos dos últimos dias me tira um pouco a alegria que poderia estar sentindo agora. Busco na memória, então, lembranças desse projeto que há mais de um ano ocupa nossas vidas.

Lembro-me bem do nosso primeiro encontro, em julho de 2014: eu, Márcia, Gabi e Carol sentamos para discutir o que queríamos fazer. Foram alguns encontros até traçar o roteiro inicial. Naquele momento o espetáculo já tinha nome e a gente definiu que seria encenado nas ruas. Lembro-me também de quando saiu o resultado, em 17 de outubro de 2014. Chorei de emoção. A primeira aprovação a gente não esquece!

Imediatamente começamos a nos reunir. Só paramos nas festas. Em janeiro deste ano fomos pra rua.  A gente percebeu que precisava aproveitar o tempo para ter Gabi conosco, pois estava grávida e sua Diana nasceria em maio. Eu, Gabi, Márcia, Carol e Gabriel Dominato, que entrou na equipe para registrar em vídeo as experiências da rua.

Como diz um personagem de “Tempos de Cléo”: “a gente aprende só de ver. A gente aprende só de ouvir”. Pura verdade. A rua foi uma escola. Você aprende que a rua tem vida própria, tem sua dinâmica, conforme o local, o horário, o dia da semana. Você aprende que uma câmera pode ser uma ameaça e fazer teatro pode ser muito perigoso. Você aprende que “tem gente que tem dois olhos pra não ver” e que não é tão difícil ser invisível.

Da rua surgiu, em carne e osso, Jéssyka. Surgiu Fátima/Sueli (para cada um da equipe ela deu um nome). Surgiu o homem do algodão doce. O sapateiro. O homem que não toma remédio. O baiano trabalhador. O homem apaixonado que traz a foto da mulher na carteira. O militar. A Cléo. Várias Cléos.

12165651_438746022978610_367073632_n

Registro de Cléo, inspiração inicial deste trabalho. Foto: Gabriel Dominato.

Aprendi muito sobre a rua, mas não só. Aprendi também sobre teatro, sobre Maringá, sobre mim, sobre meus colegas de trabalho, sobre o que eu quero fazer da vida, sobre o que eu não quero.

Uma vez me disseram que compartilhar um processo de criação é uma das maiores intimidades que pode existir. Acho que é verdade. Hoje me sinto muito mais próxima da Márcia Costa, tão segura de si, tão dedicada, tão empolgada com suas ideias, seus projetos. Alguém que me deixa segura, em quem confio. Alguém que me respeita, me dá autonomia, confia em mim. Gratidão, Márcia! Amo você! Obrigada por pensar em mim para este e outros projetos. “Nós é do morro, parceira. Tamo junto!”

Me sinto mais próxima da Gabi, que confiou em mim cegamente para administrar um projeto proposto em seu nome. Tranquila, honesta e, quando sente necessidade, firme e segura de si. Gratidão, Gabi! Sua confiança foi muito importante pra mim. Sua elegância em lidar com todos os momentos em que estive “tensa” fizeram crescer a minha admiração por você e me ensinaram mais sobre mim.

Me sinto mais próxima de Carol, tão sensível para costurar as histórias da rua que todos nós recolhemos e tão sagaz para encontrar respostas geniais, que fazem do texto de Tempos de Cléo um dos grandes trunfos do projeto. Gratidão, Carol! Você é um talento e torço para que acredite sempre em sua capacidade e siga adiante escrevendo e escrevendo.

Sou mais próxima de Gabriel Dominato pela sua dedicação ao projeto. Ele entrou com tudo na equipe, enfrentou seus medos na rua, assistiu a todos os ensaios, aprendeu e ensinou a gente. Gratidão, Gabs!

Mais próxima de Sérgio Augusto, que conheci por conta do projeto e pude perceber que é disponível, muito produtivo, dedicado. Que ele era talentoso eu já sabia. Sem dúvida a identidade visual de Tempos de Cléo é algo de que nos orgulhamos muito, algo que agrega ao projeto e que fica para a posteridade. Gratidão!

Gratidão também a Cristine Conde, que também conheci pelo projeto e nem preciso mencionar sua importância porque isso todos viram (tem importância que ninguém vê, fica escondida). Nas oportunidades de encontro que tivemos, Cris me ensinou muito. Seu figurino, eu também acho maravilhoso!

Gratidão também a Édipo Leandro Ferreira, a Lucas Fiorindo, a Fábio Mascarin e Victor Machferreh (Fantasia Filmes) e a Rafael Saes, que completam nossa equipe. Uma equipe que não briga, que dá certo. Um agradecimento especial ao Roberto Corbo, meu parceiro de todas as horas, as boas e ruins. Amo você, obrigada por estar comigo nessa.

Gratidão a todos os amigos que nos prestigiaram, sobretudo àqueles que foram várias e várias vezes nos ver. As ausências sempre são sentidas (somos humanos!), mas as presenças são muito mais importantes!

É um privilégio fazer o que você gosta com quem você gosta. Sou feliz por mais essa conquista. Sinto que esse projeto também é meu. É a Márcia quem está em cena, mas eu sempre chamo os amigos perguntando se eles vem “ver a gente”. Sim, todos nós estamos lá.  É só parar pra ver.

Que “Tempos de Cléo” voe! Que a gente consiga persistir, resistir, superar! Sempre! Evoé!

*Tempos de Cléo tem nova apresentação no dia 3 de dezembro, às 20h30, na UEM, integrando a Temporada Universitária.

Para mim, “Tempos de Cléo” é uma obra cênica que acumula cores, cheiros, ruídos, tira poesia até de um banco manchado de sangue.

Depois de algum tempo, me pego dedicando um tempo para pensar e escrever sobre o meu descobrimento como dramaturga, e mais além, sobre a minha função dentro do “Tempos de Cléo”.

Sempre fui inquieta e essa condição me levou ao teatro. Pequena, com apenas dez anos, um dia eu falei: eu quero fazer teatro. Não sabia muito bem o que isso significava e ainda hoje, com apenas duas décadas de vida, me pergunto o que isso significa.

Comecei mirrada em curso de teatro de rua, na minha querida cidade praiana Caraguatatuba. No curso surgia uma admirável Cia. de teatro, uma turma apaixonada e resistente que compõe o cenário teatral da cidade até os dias atuais. Eu mirrada e eles tão grandes, eu brincando e eles vivendo de arte… E sobre a brisa do mar, nos teatros na praça eu comecei a levar a sério a brincadeira.

De lá caminhei pra outra rua, pulei pro palco e sem querer cheguei a Maringá.  Quando eu percebi eu estava aqui, matriculada na primeira turma de graduação em Licenciatura em Artes Cênicas da Universidade Estadual de Maringá.  O que isso significava?

Agora recém-formada penso o quanto esta experiência modificou o meu olhar sobre essa arte, abriu as portas das salas de aula e ampliou o meu fazer teatral, descobrindo outras possibilidades além do palco. Hoje estudo a arte da palhaçaria, compartilho aprendizados e ainda tímida, exponho escritas.

Sempre gostei de escrever, mas até pouco tempo era um segredo, até que a Marcia Costa felizmente descobriu. Trabalhamos como alunas bolsistas em um projeto de radioteatro oferecido pelo projeto Universidade Sem Fronteiras. E foram em meio a gravações, cafezinhos e alguns estudos que tive a oportunidade de conhecer essa grande e generosa artista.

Se hoje reconheço a dramaturgia como mais uma possibilidade de trabalho, se compartilho os meus textos, é muito por conta da Marcia. A “Radioteatro Pão Quentinho” foi uma rica experiência, me deliciei escrevendo os roteiros, somando ideias com o grupo e rindo muito com as gravações.  E foi nesse ambiente que a Marcia me contou da sua vontade de criar uma peça, ela já tinha algumas inquietações e me convidou para escrevê-la.  A ideia inicial era uma costura de obras dramatúrgicas que tivessem como fio condutor histórias de grandes mulheres.

Conversa vai, vem, dia passa, outro dia e chegamos a Cléo.

E pensando sobre aquela mulher eu me arrisquei a escrever algo, e foi então que eu escrevi sobre o tempo, o tempo da Cléo, os “Tempos de Cléo”, e tenho aprendido a esperar, pensar sobre o minuto…

Depois de acumular histórias, parar pra respirar, entender o tempo, ir pra rua, mudar o rumo…

Escrever, apagar, reescrever…

Pois não é uma tarefa fácil achar as palavras certas para falar de momentos tão indescritíveis. De pessoas que convivemos apenas por algumas horas, minutos ou apenas uma passagem… Falar do humano, de uma vida sem florear, mas sem perder a poesia.

O meu trabalho tem sido ensopar-se do movimento da rua, do tempo, das figuras, das palavras cuspidas, das não ditas, gritadas, sussurradas, estampadas em cada corpo, em cada praça… E ainda transbordada de sensações, interrogações, exclamações e reticências, escrever essa obra que não procura um ponto final.

Enfim, agora, depois de alguns meses de espera e ansiedade, de experiências, estudos e reflexões, voltamos a acordar, pois mais do que nunca, mais do que antes são tempos de Cléo…

Texto: Carolina Santana

Novos rumos para Cléo

Na segunda quinzena do mês de abril de 2015, estivemos por duas vezes no campus da UEM e uma vez na A.T.I. do Ney Braga, finalizando a fase de experimentações nos locais de apresentações de “Tempos de Cléo”.

E foi na UEM, reduto da Cléo, (ela não estava presente) que algumas impressões e questionamentos me assaltaram. Por ser aquele local muito frequentado por ela, reparei durante a intervenção que algumas pessoas se confundiram achando que eu era a Cléo. E foi aí que percebi não ser esse o caminho no qual devemos percorrer.

Não queremos imitar a Cléo. Desde o princípio pensamos na Cléo como sendo nossa inspiração, uma fonte primeira motivadora na busca de outras vidas, outros errantes e sermos contaminados por todas as histórias e assim criarmos “coletivamente” um ser outro. A nossa dramaturgia está sendo construída desta forma por Carolina Santana. Ela está costurando de forma artesanal e poética (aí está seu hábil toque) todas as histórias que foram compartilhadas com a gente. Nossa inspiração está no tempo da Cléo e em todos os outros tempos que cruzaram e interagiram conosco.

Então esta Cléo que estamos criando deve ser composta de tempo de Cléo, de alegria da Jéssica, da simpatia do consertador de sapatos, do nervoso ex-militar da feira, do delicado vendedor de algodão doce, do intrépido homem que não toma remédio contra HIV e tantos e tantos outros e outras que estiveram com a gente nessa instigante jornada. Portanto novos desafios precisarão ser superados.

Quero encerrar o meu textinho de hoje dando alegremente as boas vindas à Diana! Filha de nossa querida diretora Gabriela Fregoneis. Mais uma linda historinha que acaba de nascer e quem sabe não faça parte dessa nossa aventura? Uma historinha bem linda que cintila e se mistura em nossos “Tempos de Cléo”.

Texto: Marcia Costa

Como chegamos a Cléo

Escrito por Márcia Costa

Há alguns anos andava sentindo um incômodo, um tipo de aflição, tão subjetivo que é difícil elucidar apenas com palavras… O que sei é que este tal incômodo costuma sempre aparecer em momentos que precedem um desabrochar artístico. Participei de vários projetos de criação e montagens dramáticas, mas a intranquilidade só aumentava. Sabia que estava sentindo a necessidade de construir algo. Lembro que a última vez que senti tormenta parecida desaguou na montagem adaptada da obra “A vida é sonho”, de Calderón de la Barca.

E o que desejava gerar dessa vez? O que? Intuía que deveria ser uma história e feminina. Pensei que talvez, lembrando agora o percurso até “Tempos de Cléo”, eu estivesse me apropriando da potência que um processo de criação artística pode alcançar para suprir necessidades outras, originadas de minhas dores e agruras físicas e emocionais. Buscava um presente para meu corpo e coração.

E foi nesse mergulho egocêntrico que tracei o primeiro esboço que se chamou “Pedaços de mim”, título da linda música de Chico Buarque. Neste projeto pretendia compor cenas com todas as personagens que representei nos vinte e tantos anos que faço teatro, mas logo percebi que não era isso o que procurava. Pensei que não deveria ficar centrada em mim e em minhas vivências. O que ansiava tão perturbadoramente estava fora.

Então tracei outro projeto chamado “Damas em cena”, em que pretendia compor pequenas cenas com personagens femininas da dramaturgia mundial, com destaque para a “Mãe” de Gorki, a “Mãe Coragem” de Brecht e “Joana” de Chico Buarque. Convidei a Rachel Coelho, a Gabi Fregoneis e a Ana Carolina Santana para trabalharmos juntas na composição daquela proposta. Elas aceitaram animadas e eu exultante fiquei. Agora não estava mais sozinha, outras pessoas acreditavam no projeto.

Já estávamos nos encontrando e propondo leituras quando descobri que mais uma vez não deveria ser essa a proposta, porque uma enorme inquietação me atordoava. Comecei a implicar com o título, achando-o frívolo, superficial.

Foi então que um dia em que estava parada olhando a ermo, revirando dentro de mim, procurando uma chave que abrisse e liberasse tão desassossegado impasse, desperto pousada demoradamente em outros olhos, os olhos de Cléo. Por muitas vezes a vi por ali. Ou melhor, por muitas vezes achei que via, mas não. Não como esse dia.

Escrevi todas essas linhas para conseguir responder a pergunta: Por que “Tempos de Cleo”? E garanto que boa parte da resposta não é dizível, pelo menos não por mim, pois se fosse poeta talvez conseguisse enunciar com muita beleza o que ocorreu. O fato é que aquelas inquietações desapareceram. Eu tinha encontrado uma mulher, uma história de resistência, sabedoria e generosidade. E me inspiro na Cléo para exercitar a alteridade urbana e junto com ela compartilhar com outras pessoas um bom momento de papo, de trocar histórias e, quem sabe, nesse movimento micro, relembrar, reaprender a parar, contemplar, refletir, ouvir no ritmo dos “Tempos de Cléo”.